Uma memória de Abril

Uma memória de Abril

No dia 25 de Abril de 1974 eu tinha 16 anos e vivia em Ílhavo, que então era uma vila de marinheiros – e que entretanto passou a cidade, e quase já não tem marinheiros.

Eu tinha 16 anos e todos os sonhos do mundo, como é suposto acontecer quando se tem 16 anos.

E nessa altura Ílhavo ficava muito longe de Lisboa. Umas 5 ou 6 horas de caminho pelas velhas estradas nacionais, porque as auto-estradas ainda não eram sequer o sonho europeu de um qualquer estadista provinciano.

Portanto nessa quinta-feira eu estava em Ílhavo e acordei cedo, como de costume, para o que pensava ser mais um dia normal da minha vida de estudante.

Como de costume também, comecei  começámos – o dia a ouvir rádio. Lá em casa ouvia-se sobretudo o Rádio Clube Português, que era naquele tempo a estação mais decente no meio da indecência que reinava em Portugal.

Mas, ao início da manhã, era costume ouvir-se também a Emissora Nacional – a Maçadora Nacional, como chamávamos à estação oficial. Não era por gosto, era mesmo só para ouvir o que eles diziam, e que era quase sempre mais do mesmo: "Sua Excelência o Presidente do Conselho", ou "o Venerando Chefe de Estado...", ou mais uma inauguração aqui ou ali... Enfim.

Mas naquele dia foi diferente. A Emissora não dava mais nada a não ser música – uma espécie de música, enfim: marchas militares, nada mais.
O meu pai, que era um homem do "reviralho", desconfiou logo, é claro.
Pouco mais de um mês antes tinha havido a intentona das Caldas da Rainha, portanto aquilo só podia ser sinal de que alguma coisa devia ter acontecido durante a noite.

De modo que passámos rapidamente para o Rádio Clube. Se houvesse novidades, talvez ali dissessem qualquer coisa. E disseram.

“Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas...”

Nunca mais esqueci a voz  aquela voz inconfundível do Luís Filipe Costa. Que, como vim a saber mais tarde, já estava no Rádio desde muito antes – desde logo depois de ter sido alertado, aí por volta das duas da madrugada, por um amigo que lhe telefonou.

Mas o Luís só entrou ao microfone ao princípio da manhã, para render Joaquim Furtado na leitura dos comunicados do MFA, e foi então que fiquei a saber o que se passava em Lisboa.

O próprio Luís Filipe Costa haveria de me contar muitos anos mais tarde como tudo aconteceu. Contou-mo para um livro com memórias de alguns dos protagonistas desse dia, um livro que eu escrevi, trinta anos depois, e onde ele entrou, como não podia deixar de ser.

O Luís foi a voz que me anunciou o 25 de Abril, em directo, na rádio. E o 25 de Abril foi a última revolução feita na rádio e com a rádio. E ganha pela rádio, tal como o 5 de Outubro foi ganho pelo telégrafo, como aliás contou depois Salgueiro Maia, numa outra entrevista – para a rádio – feita por João Paulo Guerra.

Mas se Luís Filipe Costa foi quem me anunciou o golpe que estava em curso – e que a desobediência civil às ordens dos militares veio a transformar numa revolução –, se o Luís me deu a notícia, a mim e ao Portugal que acordava nessa manhã, quem me esclareceu sobre qual era o sentido do movimento militar, foi outra voz, que eu também já conhecia, menos da rádio e mais dos discos que ouvia meio às escondidas em várias casas e lugares.

...Imagino que estejam a pensar em José Afonso, e em "Grândola, Vila Morena". Mas não. Embora, naturalmente, Zeca tenha estado presente na antena do Rádio Clube desde o momento em que o técnico de som Manuel Bravo José Ribeiro1 arrombou o armário onde estavam guardados os discos proibidos.

Mas o tema de que melhor me lembro, da banda sonora particular que guardo desse dia inicial, era uma cantiga com uma letra curta, mas que dizia tudo o que era preciso dizer.

Aprende a nadar, companheiro
aprende a nadar, companheiro
Que a maré se vai levantar
que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui...

Foi este refrão, quatro vezes repetido, que me desvendou – que nos desvendou – o rumo do golpe militar.

É que, para quem estava longe de Lisboa, a Revolução viveu-se sobretudo através do rádio. E, tirando uma outra informação por telefone (para os que tinham aparelho e conseguiam ligar) ou, mais pela tardinha, pelos jornais vespertinos que chegavam e eram disputados como pão, não havia como tirar aquela que, nas primeiras horas, era a grande dúvida: seria um golpe para pôr fim ao regime? Ou, pelo contrário, para devolvê-lo à velha matriz salazarista? – já que os mais extremistas da direita mais extrema achavam que, embora Marcelo Caetano seguisse no essencial a política do falecido Botas, ainda assim não era merecedor de toda a confiança dos mais fiéis veneradores da memória do "avô cavernoso".

Essa dúvida só se desfez quando na Rádio começámos a ouvir as canções que sabíamos proibidas, mas – pelo menos comigo – foi com Sérgio Godinho que se fez luz.

«A liberdade está a passar por aqui», cantava ele.

E então tive a certeza: a liberdade estava a chegar, e já não a podíamos deixar ir-se embora.

*

Este ano, pela primeira vez, vivemos um 25 de Abril diferente. Um 25 de Abril estranho, mais triste. Sem aquela doce sensação de poder sair à rua e encontrar a gente com que nos habituámos a estar, e a sorrir, e a abraçar, ano após ano.

Mas a Liberdade, ainda assim, continua por aqui. E é por ela – por causa dela e graças a ela – que mesmo fechado em casa posso ainda assim deixar aqui este testemunho.

Gostava de poder fazê-lo com outros meios, com os meios que tenho na rádio, na “minha” rádio – que não é ainda a rádio dos meus sonhos, mas que também já não tem nada, mas mesmo nada, a ver com a emissora maçadora de antigamente.

Este é portanto um testemunho imperfeito. Com erros técnicos, e ruídos, e defeitos, e enganos, e tudo. Imperfeito, afinal, como também foi o próprio 25 de Abril, que não se cumpriu na exacta medida dos nossos sonhos. Mas é também por essas imperfeições que permanece em construção.

Hoje, pela primeira vez, não pude sair à rua neste dia. Mas outros dias virão, porque há sempre um dia novo que desperta depois de uma noite escura.

Ponho um cravo na janela e dou-lhe a luz do sol de Abril. A luz da liberdade.

Intervenção nas celebrações do 46º aniversário da Revolução dos Cravos organizadas pela Câmara Municipal de Grândola. Publicado no Facebook e no Instagram oficiais do Município de Grândola, 25.Abr.2020.



1Ver esclarecimento em: José Ribeiro e a memória traiçoeira do cronista