"Se hacían los locos"

"Se hacían los locos"
Opinião de José Xavier Ezequiel
“No le gustava decir que era su nieto, lo evitava. Una vez, en el estreno de Che, de Steven Soderbergh, se le acercó uma chica y le dijo que se parecia a Benicio del Toro.”
Jan Martínez Ahrens, El País, 09.10.2016

 

Embora se recusasse a fazer disso um modo de vida, Canek Sánchez Guevara nunca escondeu quem era, nem ao que vinha. Na verdade, como se pode verificar pela figura junta, ser-lhe-ia realmente difícil esconder que era neto do Che.

Nasceu em La Habana, no revolucionário mês de Maio do igualmente revolucionário ano de 1974, filho de Hilda Guevara Gadea, a primogénita de Che Guevara, e de Alberto Sánchez, comunista mexicano envolvido no desvio de um Boeing 727 de Monterrey para Cuba. Como a sua presença era um embaraço para o governo cubano, a família mudou-se para Milão, depois para Barcelona e finalmente para a Cidade do México, onde permaneceu até ao divórcio de Alberto e Hildita.

Até regressar a Cuba aos 12 anos, a ascendência nunca fizera particular diferença na curta vida de Canek. Porém, pertencer por nascimento ao círculo interno do apparatchik da Revolução acabou por lhe moldar o futuro. “Ser O Neto do Che foi bastante difícil; eu estava acostumado a ser eu e, de repente, começou a aparecer gente que me dizia como comportar-me, o que devia fazer e o que não devia, que coisas dizer e que outras calar. Naturalmente, empenhei-me em fazer o contrário.” (Cuba Nuestra, 2004)

Esse empenho em fazer o contrário fê-lo sair de Cuba aos 22 anos e tornar-se um nómada. Bem vistas as coisas, exactamente como o avô cerca de duas décadas antes. Ora, há uma espécie de maldição não escrita em relação aos nómadas como eles — morrem cedo. Canek morreria de problemas cardíacos com apenas 40 anos, depois de correr mundo e fazer muitas coisas pelo caminho. Foi músico, designer gráfico, fotógrafo, escritor. Infelizmente escreveu pouco, sobretudo ficção, embora tenha alimentado durante muitos anos um blog com poderosas e desassombradas crónicas andarilhas, sob o título de Diario Sin Motocicleta. Pouco, muito pouco. E, como pode constatar por esta curta mas lapidar novela, é uma pena que tenha escrito tão menos do que devia.

 

Disco riscado

“O rum é a esperança do povo.” 

La Habana, anos 1990. Um engenheiro negro sobrevive numa realidade pós-soviética onde já nem o cartão do partido assegura uma vida minimamente decente. Em contrapartida, tem uma namorada russa com acesso às lojas onde se encontra de tudo o que há de melhor do capitalismo ‘embarguista’. Com dólares para a troca, bem entendido. Atravessar o mar de balsa torna-se o desporto radical preferido dos cubanos. O destino é Miami, onde vigora uma curiosa política conhecida por ‘pé seco, pé molhado’— se o balsero é apanhado ainda dentro de água é remetido à procedência, se já estiver com os pés na areia da praia tem direito ao exílio capitalista.

A década de 1980 terminara com o reality show do julgamento do General Ochoa, herói da Sierra Maestra e da Campanha de Angola, um dos oficiais superiores mais condecorados de sempre, que entretanto cai em desgraça e é fuzilado por envolvimento no tráfico de cocaína. Como se o Comandante, coitadinho, estivesse tão velho que já era incapaz de dar conta do que se passava.

Por essas e por outras, os cubanos faziam-se de parvos (se hacían los locos), que era a melhor forma de continuarem a receber as senhas de racionamento. Por essas e por outras, o nosso engenheiro negro com cartão do partido resolve, também ele, embarcar na aventura de fugir para Miami.

É um perfeito acto de desespero, contudo a única forma de se livrar do disco riscado do quotidiano cubano e dos infindáveis discursos do Comandante. E é também, afinal, um livro premonitório. Canek levou sete anos a escrevê-lo e a depurá-lo e a limá-lo e a findá-lo. Quando finalmente o deu por concluído, o coração traiu-o.

Há vidas assim. Apesar de curta, a de Canek foi intensa. E muito mais bem empregue que a pobre existência do anti-herói de 33 Revoluções.

 

3 notas avulsas

1. Canek, título honorífico dos governantes do povo Maya, significa Serpente Negra.

2. Ao contrário da imensa maioria dos livros, bons e maus, que se encontram nos escaparates das poucas livrarias que ainda restam, este 33 Revoluções topa-se logo. Tal como quase todos os outros livros, também na capa se aproveita a moda dos vernizes localizados. Porém, ao contrário de quase todos os outros, não o faz de forma gratuita, apenas para dar relevo ao nome do autor, mas com um evidente e bem resolvido propósito gráfico. As tradução, introdução e notas do Viriato Teles foram executadas com invulgar cuidado. E até o material fotográfico que ajuda a documentar o livro foi, coisa rara, impresso como deve ser.

3. Lindo, lindo, era aproveitar a deixa e editar também, entre nós, os supracitados Diários Sin Motocicleta. Pensem nisso.

In Patrícula Elementar, 25.Nov.2017

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