O novo fôlego do grupo que nunca o foi

O novo fôlego do grupo que nunca o foi

Há 40 anos nascia um dos projectos mais originais de sempre da música portuguesa: a Banda do Casaco, um grupo incatalogável que se transmudava em cada um dos sete discos que gravou e que deixou um contributo único e irrepetível na música portuguesa. A obra completa está finalmente reunida, numa edição muito apetecível.

Aos mais imprudentes, Nuno Rodrigues avisa, sem cerimónias: «Aqui não se vai comemorar carreira nenhuma.» E a verdade é que a Banda do Casaco, o grupo cujos 40 anos agora se celebram e que justificam a «aventura louca» de uma edição integral, é das formações mais peculiares da história da música portuguesa: fundado em 73 e publicado pela primeira vez em disco no ano seguinte, no meio da euforia revolucionária do pós-25 de Abril, gravou um total de sete álbuns de originais e terá dado mais ou menos o mesmo número de espectáculos ao longo dos dez anos em que se manteve activo.

Que razões justificam, então, o júbilo com que esta edição integral (à venda a partir da próxima semana) está a ser acolhida por músicos, jornalistas, estações de rádio – e também, assim se espera, pelo público? Para José Fortes, o engenheiro do som inconfundível da Banda do Casaco (registou seis dos sete títulos do grupo, e apenas não esteve em Contos da Barbearia, gravado por outro grande mestre destas artes, Hugo Ribeiro), o segredo está numa música que «não se identifica com nada, a não ser com uma emoção». Na opinião do homem que dirigiu tecnicamente as gravações de muito do nosso melhor património musical e discográfico, é isso que faz deste um grupo de características únicas: «A música da Banda do Casaco não tem a ver com nenhum tipo de música», diz. «A referência da Banda do Casaco é não ter referência nenhuma e viver à base de uma coisa que é a pura emoção.»

Isto foi, para José Fortes, o mais gratificante de todo o trabalho: «Eu sempre tive alguma dificuldade em explicar às pessoas porque é que gosto de vários tipos de música. Porque a música vive mais à base da emoção do que da matemática. A emoção não se consegue escrever, não se descreve o gosto de uma maçã. Mas sente-se. E, se uma música me transmite emoção, é porque tem qualquer coisa. Afinal, as primeiras manifestações musicais, quando os homens se puseram a bater palmas ou a bater com paus em pedras para produzir som, foram coisas que provocaram sensações, que emocionaram as pessoas.»

Um conjunto de projectos

Ora a música da Banda do Casaco tinha (e tem) essa capacidade única de provocar sensações, por vezes contraditórias. Foi assim logo por ocasião do primeiro álbum, publicado em 75 (depois de um single de apresentação saído ainda em 74 com os temas Lavados, Lavados Sim e A Ladainha das Comadres) e que rapidamente despertou a atenção dos ouvidos mais exigentes: tudo aquilo era novo e tudo aquilo era diferente, tanto do que se fazia antes como do que começou a fazer-se depois de Abril. Mas nada daquilo era catalogável: se esteticamente a Banda do Casaco podia considerar-se próxima da «escola» encabeçada por José Afonso, o imediatismo de boa parte da canção de intervenção praticada em abundância nos primeiros anos da democracia não era coisa que os seduzisse.

Para mais, a BdC apresentava-se do lado de fora do espectro político-partidário que a democracia permitia desenhar e não ostentava uma atitude «militante», ao contrário da generalidade dos cantores de então, incluindo muitos dos da «velha-guarda», em luta por um lugar ao sol na praia do novo regime.

Acontece, porém, que embora publicada em disco pela primeira vez já depois da revolução, a BdC começou a desenhar-se bastantes meses antes, após o músico Nuno Rodrigues e o letrista António Avelar de Pinho se terem conhecido. Nuno tinha a experiência de dois grupos breves: Música Novarum, que formou em 1969 com Judi Brennan, Daphne Stock e António Lobão, e Family Fair, criado em 1971 com os ex-Plexus Carlos Zíngaro e Celso Carvalho.

Pinho, por seu lado, vinha da Filarmónica Fraude, um projecto inovador criado em 1969 com o teclista Luís Linhares, mas que acabou depois de publicar um álbum e dois singles onde se cruzavam estilos próximos do rock progressivo que então se fazia nos Estados Unidos com temas e sons da tradição musical portuguesa.

O encontro entre os dois foi decisivo, e não passou muito tempo até que o primeiro trabalho de ambos começasse a ganhar forma. Seria um álbum conceptual a que António Pinho imprimiria uma grande dose de sarcasmo misturada com um toque surreal que se estendia às músicas, e onde, de algum modo, se fazia a súmula das experiências anteriores dos dois. Assim, e com certeza não por acaso, da formação inicial da BdC faziam parte os dois companheiros de Nuno no Family Fair (Zíngaro e Celso), Judi Brennan (dos Novarum) e Linhares (da Filarmónica).

Ao todo, a história da BdC regista um total de 57 integrantes, nas várias etapas – que é como quem diz: nos vários discos – da vida do grupo. «A Banda do Casaco nunca foi um grupo», diz Nuno Rodrigues. «Foi sempre um projecto. Ou, melhor dizendo, foi um conjunto de projectos.»

«A Banda do Casaco teve um mentor e 56 colaboradores», ironiza José Fortes. «O Nuno procurava as pessoas de que precisava e fez bons trabalhos com todos. Todos fizeram falta no tempo em que lá estiveram. E, que eu saiba, ninguém saiu zangado com ninguém.»

Foi por assim ser que a Banda se foi metamorfoseando de disco para disco, assumindo novas formações (apenas Celso de Carvalho participou em todos os registos do grupo) à medida das necessidades. Talvez por isso, também, o trabalho do grupo foi sempre dirigido sobretudo para os discos, sem que alguma vez tenha havido grande investimento na sedimentação de uma «banda de estrada». O facto de, quer Pinho, quer Rodrigues, serem, além de músicos, profissionais da indústria discográfica, poderá ter contribuído para que assim fosse. Mas, para Nuno Rodrigues, o essencial era poder compor os temas de que gostava e fazê-los como queria. Curioso, não vacila perante a experimentação de novos sons, e procura fazê-lo sem limites nem preconceitos, porque só assim se chega às emoções. O resultado é este som.

Criador de emoções

«O Nuno criava emoções através de sons e ilustrações fonéticas», diz José Fortes. «O Fortes teve uma importância fundamental no som da Banda, não se limitava a gravar o que fazíamos», afirma Nuno Rodrigues. E não se trata de simples troca de elogios à distância, pois que já em 1984 o nome de José Fortes surgia na contracapa do álbum Com Ti Chitas como integrante do grupo, ao lado dos restantes músicos e em pé de igualdade com eles.

«E é também por isso que falo em ‘40 anos de som’», acrescenta Nuno. «Porque todo o trabalho foi remasterizado, agora, pelo José Fortes, que trouxe à luz do dia todo o som original.» Uma característica comum, aliás, a grande parte das edições remasterizadas, que frequentemente permitem aos que participaram nos registos originais redescobrir tudo o que, no processo analógico, se perdia na transposição entre os vários suportes de gravação.

40 anos de som é a designação da colectânea que Nuno Rodrigues fez publicar, em simultâneo com a edição integral, e que de algum modo serve de «sumário» da obra da BdC, com 16 temas que dão uma perspectiva global das várias fases do grupo. Para quem não tem possibilidades de adquirir a obra integral, esta antologia é uma alternativa com certeza a ter em conta.

A edição integral agora publicada tem o selo da Companhia Nacional de Música, a editora que Nuno Rodrigues criou há 20 anos, mas isso não tornou o trabalho mais fácil: «Provavelmente serei o único músico do mundo que na sua própria editora publica uma integral. Foi um processo complicado, porque há aqui discos de várias editoras, e não é fácil conciliar isto tudo.»

Além da discografia completa da BdC, esta edição inclui um CD, Origens, com temas da pré-história da Banda (Música Novarum, Daphne e Family Fair) e um dvd com vídeoclips, entrevistas e actuações ao vivo. Mais do que um acessório ou um extra desta antologia, este registo videográfico é um elemento importante para perceber melhor o que foi este grupo, mas também para traçar o retrato da época em que desenvolveu a actividade. Há, de resto, alguns momentos antológicos nesta edição, como aquele em que um repórter, nos idos de 70, insiste em querer saber se o grupo é «de esquerda ou de direita». Ou o espectáculo, numa colectividade recreativa, servido por um apresentador a fazer lembrar os ensaios de teatro d’O Pai Tirano. Uma delícia.

Uma história a muitas vozes

Sete discos, dez anos de actividade, quatro décadas de história. E muitas histórias. Contadas, vividas, testemunhadas. Tudo isto faz parte desta edição integral em duas caixas, e contribui para fazer deste um acontecimento discográfico invulgar entre nós.
«Pode parecer uma loucura, e se calhar é», confessa Nuno Rodrigues. «Editar uma integral destas numa época como a que vivemos é um risco, mas também é um desafio.»

Um desafio a que se entregou, igualmente, contribuindo com um testemunho autobiográfico onde que traça o seu percurso pessoal e o da BdC, sem meias palavras nem falsos pudores. São as «Semínimas da Vida de um Músico», um dos dois livros que integram esta edição. O outro, «Cantos de Amor e Trabalho num País: Portugal», é a história da BdC, muito bem contada por Nuno Galopim, em 50 páginas que são também um roteiro de excelência para a percepção global do trabalho e da importância da Banda do Casaco na história da música portuguesa do último meio século.

Uma história, também, que se cruza com as histórias individuais da mais de meia centena de «colaboradores» deste «conjunto de projectos». Porque, é bom não o esquecer, por aqui passaram nomes e personalidades tão diferentes como Né Ladeiras e Cândida Soares (mais tarde Cândida Brancaflor, nome artístico criado precisamente a partir de um título duma canção da BdC), Mila Ferreira e António Emiliano (hoje linguista eminente e uma das vozes mais lucidamente críticas na oposição ao novo acordo ortográfico), José Campos e Sousa e Carlos Zíngaro, Carlos Barretto e Rão Kyao, Moz Carrapa e Jerry Marotta (à época baterista de Peter Gabriel), entre muitos. E se a maioria continua no activo, outros houve que já desapareceram (Celso Carvalho, falecido aos 48 anos, foi o mais precoce) ou então abandonaram a música e trocaram os palcos por uma «vida normal». O caso mais recordado será porventura o de Gabriela Schaff, suíça de origem, que, depois de ter gravado Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos com a BdC alcançou grande êxito a solo (Põe os teus Braços à Volta de Mim foi um sucesso nos finais dos anos 70 e Eu Só Quero ficou em segundo lugar no Festival da Canção de 79, ambas de autoria da dupla Pinho-Rodrigues). Gabriela chegou mesmo a gravar um álbum em Nova Iorque produzido por Marotta, mas acabou por abandonar a carreira artística e regressar à Suíça, em fins dos anos 80.

A história da BdC está crivada de histórias daqueles e daquelas que por ali passaram. Mas a grande protagonista desta história é sem dúvida a música e o modo inigualável como este grupo lhe deu vida, cruzando a tradição com a modernidade, recriando sons, inventando emoções. Misturando sons de Trás-os-Montes com ritmos da grande cidade ou abrindo espaço por entre os silêncios. Fazendo e refazendo, e voltando a fazer.

«Quando a gente lançava um álbum», lembra Nuno Rodrigues, «ninguém estava à espera de um trabalho deste ou daquele tipo, e sentimos sempre que havia respeito pelo que fazíamos. Eventualmente pela inovação.»

Quando lhe pergunto se, 40 anos depois de ter começado e quase 30 depois do último disco, a BdC é hoje apenas uma memória, Nuno sorri, e deixa no ar o que pode bem vir ser o sinal de um outro desafio: «Pode ser mais do que uma memória, mas para isso é preciso que haja engenho e arte.» Que é uma outra forma de dizer: a Banda do Casaco já nos surpreendeu tantas vezes, sabe-se lá se não volta a fazê-lo.

QI | Diário de Notícias | 30.Nov.2013