Viver (d)a música

Viver (d)a música

Nasceu há 56 anos, no Porto, mas é um benfiquista visceral. A música foi o seu primeiro amor, e aos 18 anos decidiu que ia ser também o seu modo de vida. Fez parte de grupos que fizeram história, como os Pop Five Musica Incorporated ou o Quarteto 1111, e é autor de mais de 400 canções, boa parte delas de grande sucesso.

Durante quase 30 anos ocupou lugares de relevo em algumas das maiores editoras multinacionais estabelecidas em Portugal. Agora, afastado por vontade própria dos lugares de decisão da indústria discográfica, é assessor das administrações da SPA e da RTP e não desiste de alimentar os sonhos que deram forma a toda a sua vida. É o Tozé Brito, e acaba de publicar um disco onde faz um balanço de 40 anos de vida dominados pelas canções e pela presença constante dos amigos, que nunca esquece.

Autores – “Vida, Canções e Amigos”, é como se chama o disco que acabas de publicar. São as três coisas mais importantes da tua vida?

Tozé Brito – A vida engloba as canções, os amigos, os afectos, engloba a praia e o sol, uma boa refeição com um bom vinho a acompanhar… Mas neste caso a palavra “vida” foi-me quase imposta. O disco faz parte de uma série que está a ser editada pela Farol que começou com o Paulo de Carvalho, o José Cid, e outros nomes. A Farol quis comemorar esses 40 anos de música e tinha essa série de discos, todos eles com a palavra “vida” no título, era o que lhe dava unidade. A isso acrescentei “canções”, que é o que ali está, e “amigos” porque eu tinha duas hipóteses: ou escolhia só canções cantadas por mim, ou seleccionava dez ou quinze interpretadas por mim e as outras 25 ou 30 cantadas por gente para quem eu escrevi e que são grandes amigos meus, pessoas que eu considero muito. E foi o que fiz.

A – Foste sempre muito mais autor do que intérprete...

TB – Muito mais, embora tenha gravado, como intérprete, três álbuns a solo e vários singles. O que quer dizer que, das 400 canções que eu tenho inscritas aqui na SPA, se calhar umas cem cantei-as eu e as outras 300 cantaram-nas os tais meus amigos. Aquilo que eu escrevi para outros foi o teve mais sucesso e há uma meia dúzia de canções minhas que toda a gente neste país conhece e canta. E por isso achei que era fundamental, num disco que celebra 40 anos de canções, que estivessem lá aquelas que foram mais significativas. Estão essas e estão também as outras, as mais intimistas, que ficaram nos lados B dos singles, mas considero que são as canções de que mais gosto.

A – Como autor, fizeste canções para os mais variados intérpretes…

TB – Eu nunca fiz censura estética. Acho que este é o termo exacto. Nunca tive a preocupação de pensar “não vou escrever coisas para esta pessoa porque aquilo que ela faz não me agrada”. Não. Vi sempre as coisas ao contrário, isto é, não abdico duma determinada linha, que é a minha, e se a pessoa conseguir adaptar-se à minha canção, muito bem. Ou seja: escrevi algumas canções para pessoas com que não me identifico de todo, em termos estéticos, em termos musicais. No entanto, aceitei esses pedidos, sempre. Eu nunca bati à porta de ninguém a dizer “tenho aqui uma canção para ti”, esperei sempre que as pessoas viessem ter comigo, e foi o que aconteceu com o Paulo de Carvalho, com o Carlos do Carmo, com o Luís Represas, pessoas que são grandes amigos meus, e também com outras que eu praticamente não conhecia. Foi o que se passou com o Clemente, com o Dino Meira… Eram pessoas que, desde que me pedissem uma canção, eu era incapaz de os tratar de uma forma diferente da maneira como tratei os outros.

A – Das 400 canções que já fizeste, há alguma que, hoje, aches que não voltarias a escrever?

TB – Há, várias. Coisas que eu escrevi à pressa, e algumas com intuitos assumidamente mercantilistas, a pensar no dinheiro de que precisava para pagar as contas. Não foram muitas, mas escrevi algumas. E outras coisas que escrevi muito à pressa, numa noite, porque as pessoas me pediam e já tinham estúdio marcado para o dia seguinte. Aí, eu percebia que muitas vezes era o meu nome que eles queriam, não estavam muito preocupados com a qualidade da canção.

A – Começaste nos Pop Five Music Incorporated, com 16 anos…

TB – Com 15. Tinha 16 anos quando gravámos o primeiro disco.

A – Nessa altura, a ideia de ser músico era uma coisa complicada…

TB – Era uma loucura. Ser músico, assumir a carreira de músico como opção de vida, era uma loucura. E aos 18 anos, depois do liceu, foi o que eu fiz: comuniquei aos meus pais que ia ser músico a tempo inteiro…

A – E qual foi a reacção?

TB – Não foi brilhante. Embora, uns anos depois, o meu pai tenha percebido não só que eu estava perfeitamente determinado a que a minha vida fosse assim, como também o sucesso que tive, depois de 69, no Quarteto 1111, fez com que ele percebesse que aquilo não era uma brincadeira. É evidente que corri riscos, porque querer ser músico em Portugal, nos anos 60, sem ter o conservatório completo e sem ser para tocar numa orquestra, era arriscado.

A – Além disso, os projectos onde estiveste, sobretudo o 1111, eram um bocado contra a corrente – e não estou a falar apenas em termos políticos…

TB – Sim. Era mais uma razão para ter cuidado. Mas eu penso que, quando nós queremos muito uma coisa, as hipóteses de a conseguir aumentam exponencialmente. Isto é válido para tudo na vida. E também tive sorte. Claro que é preciso algum talento – e vamos aqui pôr de parte falsas moéstias: não se escrevem 400 canções, algumas das quais alguns milhares, ou talvez milhões de pessoas conhecem, sem que haja algum talento. Mas também é preciso muita sorte, porque eu conheço muitos autores que escreveram excelentes canções, mas não tiveream a sorte que eu tive.

TB – Em finais dos anos 70 começaste a trabalhar no ramo editorial, onde acabaste por fazer uma carreira que culminou na administração de importantes multinacioniais. Durante esse tempo, alguma vez sentiste que podia haver um conflito entre o Tozé autor e o Tozé editor?

A – Não. Mas também tive o cuidado de evitar esse tipo de situações, que podiam facilmente ter acontecido. Escrevi sempre, fundamentalmente, para os artistas das editoras para onde trabalhava na altura. Na BMG, onde estive oito anos, foi diferente: tinha uma cláusula no meu contrato que me proibia de escrever canções, porque a companhia achava que não fazia muito sentido um administrador-delegado ser também autor e compositor. Escrevi algumas, sob pseudónimo, sempre tendo o cuidado de dar conhecimento aos meus superiores. E quando voltei à Universal, a situação modificou-se outra vez: eles achavam que não havia qualquer incompatibilidade, só me pediam para gerir as coisas com bom senso, tendo em conta que eu era o presidente da companhia em Portugal. E foi o que fiz: impus a mim mesmo um limite de duas ou três canções por ano, e tornei-me muito mais parcimonioso a aceitar convites para escrever canções.

TB – Ficaste na Universal até finais de 2007…

A – Sim. Quando houve uma fusão entre a Universal espanhola e a portuguesa a administração passou para Madrid e não fazia qualquer sentido eu continuar, a partir do momento em que as decisões passavam a ser tomadas lá fora. E saí, de forma pacífica, como sempre saí dos lugares onde estive.

TB – Este fenómeno de concentração das editoras é fruto dos tempos. Mas não achas que isso poderá ser perigoso não só para a indústria musical, mas para a própria música portuguesa?

TB – Poderia, e pode. Mas eu espero que não, porque há uma alternativa que nós não podemos nunca pôr de parte: há editores portugueses, e compete-lhes a eles produzir e editar as coisas que cá se fazem. Aquilo que, no fundo, eu vou continuar a fazer – só não vou editar, porque não sou um editor, mas vou produzir música, o que significa preparar os conteúdos musicais, descobrir os artistas, gravar as canções e depois entregá-las a uma editora, que as comercialize e faça o trabalho de marketing. Eu penso que esse fantasma tem de ser afastado. Repare-se que, na mesma altura em que a EMI e a Universal, duas multinacionais de referência no mundo, centralizam o seu trabalho em Espanha e começam a despedir artistas – ou a dispensar, que os artistas não se despedem, dispensam-se – na mesma altura em que isso acontece, aparecem a Farol e a Som Livre, duas editoras ligadas a grupos de comunicação – a Média Capital e o grupo de Pinto Balsemão – e há um deslocamento de vários artistas que começam a sair das multinacionais e vão para essas editoras. E não são as únicas: há a Vidisco, a Espacial e outras, mais pequenas e mais alternativas. E é aí que a música portuguesa tem de crescer: em pequenas empresas, à semelhança do que acontece em Inglaterra e nos Estados Unidos, onde os artistas raramente entram directamente para uma grande editora. Eles fazem o seu percurso pelas editoras independentes, tocam ao vivo e depois, quando chega o momento, é que gravam para uma multinacional.

TB – É um pouco como antigamente: um longo trabalho antes do primeiro disco…

TB – É. Os Pop Five antes de gravar discos andavam na estrada, a tocar em bailes, festas de finalistas, queimas das fitas – era o circuito que havia. E um dia alguém nos achou graça e convidou-nos para gravar um disco na Arnaldo Trindade – uma editora que tem responsabilidades sérias na promoção da boa música portuguesa.

A – E muitas vezes não se dá o devido valor ao papel que o Arnaldo Trindade teve em tudo isso...

TB – O Arnaldo Trindade teve um papel fantástico. Ele começou ainda muito novo fundando uma editora, a Orfeu, para editar discos de poesia ditos pelos grandes poetas – e estão lá todos. Eles podem nem ser grandes diseurs, mas ouvir a poesia da Sophia de Mello Breyner dita por ela tem um valor incalculável. E depois a Orfeu evoluiu para a música, e começou a fazer apostas completamente marginais, mas do mais importante que a música popular portuguesa fez: o Zeca Afonso, o Adriano… E temos de voltar a isso, tem de voltar a haver Arnaldos Trindades e Sassettis a lutar por aquilo que é nosso. Porque as multinacionais, com todo o respeito – e eu conheço-as bem porque vivi 20 anos a dirigi-las – têm uma estratégia de lucro. Quem dirige as multinacionais, ao contrário do que se possa pensar, são pessoas que gostam muito de música. Mas por trás deles estão os accionistas, e esses não tem contemplações: querem olhar para números, e quando os números não lhes agradam, desviam os seus investimentos para outra indústria qualquer, como o turismo ou o imobiliário. Há uma lógica de investimento e de desinvestimento que passa pelos resultados da companhia e pelo mercado…

A – E o mercado está mau…

TB – O mercado está tragicamente num estado lastimoso. Nós caímos de 120 milhões de euros de vendas de música em Portugal em 2002 para menos de 50 milhões em 2007. Em cinco anos, desapareceu 60 por cento do mercado…

A – E isso acontece porquê? É só pelos downloads ilegais?

TB – Os downloads fundamentalmente. Porque quem comprava a música, há dez, quinze anos, era essencialmente a malta dos 15 aos 30-35, e hoje em dia é o contrário: vendem-se discos às crianças, porque são os pais que os cumpram, e a um público juvenil até aos 15 anos, que compra os D’zert, mas também é capaz de comprar o Jorge Palma. E depois deixam de comprar, e só voltam a fazê-lo a partir dos 30, quando já têm a vida estabilizada e já não têm paciência para estar a fazer downloads…

A – Ou nem sabem muito bem onde é que se vai buscar uma música à net…

TZ – Pois. Eu sei, porque fui obrigado a aprender, mas não o faço para mim. Até porque a qualidade é má, o som não é o mesmo…

A – E além disso um disco é um objecto, é físico, podemos tocar-lhe…

TB – Eu ainda sou do tempo do vinil! Se pudesse voltar atrás eu queria era o vinil, não eram os cds. Até porque a capa era grande e eu via coisas que não vejo num cd, que é muito pequeno… Mas, enfim, apesar de tudo, o cd veio de alguma forma facilitar as coisas. Dantes, para gravar um disco era preciso alugar um estúdio, eram precisos meios. Hoje é tudo mais fácil, grava-se um disco tranquilamente em casa. Mas os downloads são, de facto, o grande cancro que há que combater…

A – Esta questão dos downloads começou por ser quase uma extensão da pirataria tradicional. Isto também se liga ao facto de as pessoas ainda não valorizarem devidamente as questões da propriedade intelectual…

TB – Pois não. A questão da propriedade intelectual é muito complicada, e há muito pouca gente que tenha capacidade para o entender ou até disponibilidade para pensar nisso. O que é a propriedade intelectual? Na realidade, quem escreve livros, quem faz peças de teatro, quem pinta ou faz escultura, tem de ser pago por isso. Se toda a gente começa a pensar que pode ir à internet e fazer uma cópia…

A – Ninguém se lembra de ir almoçar a um restaurante e não pagar a conta…

TB – O problema é que a propriedade intelectual passa por coisas que não são materiais. E se alguém quer beber um café e comer um pastel de nata tem de os pagar, porque aí não há internet que lhe valha: não se pode pedir uma bica e recebê-la por email! Estamos a falar de um tipo de propriedade que as pessoas têm dificuldade em perceber ou que, quando percebem, fazem de conta que não percebem. Isto também é muito português, é uma questão educacional. Em Inglaterra e nos países escandinavos há uma conciencialização diferente, a fraude e o roubo não fazem parte do léxico deles, da sua maneira de estar na vida. O português é mais do desenrasca…

A – Como é que isso se resolve?

TB – Aquilo que se passa hoje na internet é a anarquia total, e a maneira de acabar com isso passará talvez por fazer com que as pessoas paguem de cada vez que vão à net. Se um dia for preciso pagar dez ou vinte cêntimos para entrar na net alguém deixa de lá entrar? Se calhar a solução para esses problemas passa por aí…

A – Agora que deixaste a Universal, como é que olhas para os próximos anos?

TB – Com grande vontade de fazer coisas novas, de me divertir, de continuar a fazer o que gosto. Assumi funções a partir de 1 de Fevereiro como assessor da SPA, uma casa que é minha há 40 anos: a primeira vez que inscrevi uma canção na SPA foi em 1967. É uma casa que me diz muito, é o grande bastião e o grande defensor dos direitos de propriedade intelectual em Portugal, e farei tudo o que puder para dar o meu contributo, sobretudo em áreas onde eu sei que posso ser útil, até poprque estive a dirigir empresas multinacionais durante muitos anos. Tenho também propostas para dar aulas numa universidade, uma cadeira dentro do curso de Etnomusicologia, mas não sei se vou ter tempo para isso tudo. E não vou deixar de ter a minha produtora, isso para mim é fundamental. Vou continuar a fazer música, a apostar em talentos novos, a produzir artistas. Foi toda uma vida que eu dediquei à música, e não vou deixar de o fazer.

Um homem feliz

«Um homem feliz e de consciência tranquila», é como de define a si mesmo António José Correia de Brito, nascido no Porto a 25 de Agosto de 1951, o mais velho de quatro irmãos. Estudou piano, mas acabou por escolher a viola como instrumento de eleição: era mais portátil e permitia mais facilmente o convívio com os amigos.

Aos 15 anos, criou a primeira banda, como mais quatro colegas de liceu, o Grupo 4, e logo de seguida passou para o Pop Five Music Incorporated, ao tempo o grupo mais representativo da cidade do Porto, com que gravou os primeiros discos e onde teve as primeiras experiências como compositor.

Aos 18 anos, um convite de José Cid para integrar o Quarteto 1111 fez com que passasse a viver em Lisboa. A perspectiva de ser mobilizado para a guerra colonial levou-o a partir para Londres, em 1972, onde casou e tirou um curso de psicologia, e de onde regressou apenas em 1975. Fez parte dos Green Windows e dos Gemini, e integrou o projecto Godspell, que se manteve em cena durante cerca de um ano. O seu primeiro grande sucesso foi o tema “20 Anos”, escrito em parceria com José Cid para os Green Windows, que vendeu mais de 200 mil singles.

Em 1978 começou a trabalhar na Phonogram (depois Polygram) como A&R, tornando-se vice-presidente da companhia em 1985. Convidado, em 1990, para administrador da BMG, manteve-se nesta discográfica durante oito anos, altura em que saiu por discordar do rumo que a editora estava a seguir. Criou então uma produtora, a MAR (Música, Artistas e Repertório), a que se dedicou por inteiro nos dois anos seguintes, antes de assumir o cargo de presidente da Universal Music, sucessora da Polygram, onde se manteve até finais de 2007.

Agora, é assessor da Adminsitração da SPA, funções que exerce também na RTP. E pondera uma convite que teve para leccionar numa universidade. Mas continua a fazer música e a escrever canções, que é aquilo de que mais gosta. «Há ainda muita coisa que quero fazer e que faz com que eu acorde todos os dias bem disposto», afirma. «Não sou, nunca fui, uma pessoa de me acomodar.» 

Revista Autores - Jan/Mar 2008